Retorno aos grunhidos
Por que a IA pode te transformar em um macaco adestrado (e como se livrar dessa revolução reversa)
Caro leitor,
Na longínqua década de oitenta, a banda Titãs lançou o álbum Cabeça Dinossauro (1986). Um dos hits mais famosos desse trabalho é a música “Homem Primata”, com o refrão simples que marcou aquela época: “Homem primata / Capitalismo selvagem”.
A letra é uma crítica ácida, com a cara daquela geração. Uma provocação contra o consumo desenfreado, a selvageria urbana e o empobrecimento intelectual.
Com licença poética, uso a canção para embalar esta newsletter e lembrar que…
Desde os primórdios
Até hoje em dia
O homem ainda faz
O que o macaco fazia
Eu não trabalhava
Eu não sabia
Que o homem criava
E também destruía
Dado o compasso, posso lançar o termo que quero emplacar nesta edição: “dissonância saudável”.
Sim, eu sei, soa como um termo de psicologia pop que alguém inventou numa TED Talk da vida. Mas deixa eu explicar…
“Dissonância saudável” é quando duas ideias aparentemente opostas colidem na sua cabeça. Mas ao invés de causar confusão, elas provocam clareza. É o desconforto que te obriga a pensar antes de agir, o atrito que gera faísca criativa (adorei isso!).
É exatamente o que eu vou fazer com você a partir de agora.
A verdade é que a IA pode te fazer produzir e faturar como nunca, mas também ferrar o seu cérebro e te transformar em um macaco bem adestrado.
Respira fundo.
Releia a frase.
Releu? Então agora posso mostrar por que as duas coisas são verdadeiras e como você pode (e deve) conviver com essa “dissonância”, colhendo os benefícios da IA sem virar um macaco adestradinho.
Tudo começa com um viral no LinkedIn
Há algumas semanas, fiz uma postagem despretensiosa na rede mais profissional da internet. O teor era este:
Sim, o ChatGPT está deixando você mais burro!
Vou confessar publicamente algo que dificilmente alguém confessaria...
Nos últimos dias, comecei a me sentir mais burro por escrever usando IA (todo mundo está usando, até mesmo os escritores consolidados!).
Veja, minha relação com as inteligências generativas não é tola. Quanto ao uso profissional, desde o começo, estabeleci regras que consistiam basicamente, em: ter as ideias, rascunhar essas ideias, [pedir auxílio à IA para desenvolver uma parte ou, dependendo da pressa, todo o texto], conferir, revisar, lapidar, e por fim, revisar.
Tudo bem, é um sistema interessante que mantém o lado humano ativo, que me economizou muito tempo e me ajudou a ganhar mais dinheiro. Mas a verdade é que todos somos viciados em conveniência, e eu me dei conta que estava convenientemente deixando com a máquina parte fundamental na construção de cognição, nesse caso [pedir auxílio à IA para desenvolver uma parte ou mesmo todo o texto].
Sendo mais claro, sabe quando você está compondo um parágrafo e foge a próxima palavra? O que fazíamos antes dos bots de textos generativos? Consultávamos o dicionário, mesmo que fosse no Google. Assim íamos, palavra por palavra, desenvolvendo as ideias.
Porém, o que fazemos hoje? Pedimos ao ChatGPT para completar o raciocínio. Assim, terceirizamos à máquina um grande fundamento da construção de linguagem: o "repertório semântico".
Um repertório semântico refere-se à capacidade de uma pessoa, ou de um sistema, de armazenar e utilizar o significado de palavras, frases e outros elementos da linguagem. Ele envolve a compreensão e o uso de significados, relações semânticas (como sinônimos, antônimos, hiperônimos etc.), e o contexto em que as palavras são usadas.
Sem esse repertório, as pessoas apresentam enorme dificuldade de concatenar ideias e formar um discurso completo, o que corresponde à dificuldade de pensar com clareza.
Esse é um problema gravíssimo, porque, como evidenciou Heidegger, nosso pensamento é limitado pelas palavras de que dispomos. Afinal, não podemos ter um pensamento ao qual não corresponda uma palavra. Sim, as palavras são as condições para que se possa pensar.
Sabe qual foi o resultado dessa confissão?
Milhares de visualizações…
Centenas de comentários…
Gente agradecendo…
Gente discordando…
E muita gente dizendo:
“Eu também estou sentindo isso, mas não tinha parado pra pensar.”
Pois é. Essa é a tal da dissonância saudável em ação.
Afinal…
Como é que a ferramenta que te dá mais velocidade, mais produtividade e mais acesso à informação, ao mesmo tempo pode estar empobrecendo a sua capacidade de pensar?
Simples. Existe uma diferença gigantesca entre ter acesso a dados e construir conhecimento.
Uma coisa é saber dar comandos para receber respostas prontas. Outra é trilhar o caminho intelectual que te leva a produzir uma resposta.
É como comparar andar de moto com andar de bicicleta, uma forma veloz e outra lenta de se locomover. Ambos meios te levam de um ponto ao outro, mas só uma delas exige mais esforço e faz você ficar em forma.
Com a IA é a mesma coisa. Quanto mais você terceiriza o processo de pensar e valoriza as respostas rápidas, mais atrofiado fica o seu “músculo cognitivo”, que depende de tempo dedicado para se desenvolver.
O primeiro estudo a respeito do assunto acaba de sair. E o resultado é alarmante!
O MIT acabou de completar o primeiro estudo de tomografia cerebral dos utilizadores do ChatGPT.
Os testes provaram que, embora a IA possa nos tornar mais produtivos, também pode comprometer profundamente nossa cognição.
Análise de EEG da atividade cerebral de grupos utilizando diferentes ferramentas.
Quatro meses de dados revelaram o seguinte:
83,3% dos usuários do ChatGPT não conseguiram citar textos que escreveram minutos antes. Imagine você escrever alguma coisa, carregar em salvar, e o seu cérebro se esquecer automaticamente… Pois é!
As análises cerebrais mostraram que as conexões neurais colapsaram de 79 para apenas 42. Uma redução de 47% na conectividade cerebral. Agora pense: se o seu computador perdesse metade do seu poder de processamento, você diria que está estragado. É o que está acontecendo com o cérebro dos usuários de IA.
Os professores não sabiam identificar quais textos foram feitos com IA, mas podiam sentir que algo estava errado. Eram ensaios sem alma, vazios em relação ao conteúdo. Ou seja, o cérebro humano consegue detectar “dívida cognitiva” mesmo quando não consegue nomeá-la.
E aqui está o que para mim foi mais assustador:
Quando os pesquisadores forçaram os usuários do ChatGPT a escrever sem IA, eles tiveram um desempenho pior do que as pessoas que nunca usaram IA.
Entendeu? Não é só dependência. É atrofia cognitiva. É como um músculo que esqueceu como funciona.
A equipe do MIT usou tomografia cerebral EEG em 54 participantes durante 4 meses, rastreando ondas alfa (processamento criativo), ondas beta (pensamento ativo) e padrões de conectividade neural. Ou seja, não se trata de opinião. São provas de que há danos cerebrais mensuráveis devido ao uso excessivo de IA.
Sim, o ChatGPT nos torna 60% mais rápidos a concluir tarefas (isso a pesquisa também mostrou). Mas reduz a “carga cognitiva” necessária para a aprendizagem real em 32%. Na prática, estamos trocando a capacidade cerebral a longo prazo por informação a curto prazo.
As empresas que celebram os ganhos de produtividade de IA estão, sem saber, criando equipes cognitivamente mais fracas. Os funcionários se tornam dependentes de ferramentas sem as quais não conseguem viver, e menos capazes de pensar independentemente.
Muitos estudos recentes sublinham o mesmo problema, incluindo os da Microsoft. Pesquisadores do MIT chamam isso de “dívida cognitiva”. Cada atalho que você toma com IA cria pagamentos de juros na capacidade de pensamento perdido. E, como numa dívida financeira, a conta sempre chega.
Some isso ao baixíssimo nível de leitura, ao uso excessivo de vídeos curtos e ao consumo de conteúdos imbecis, e temos a receita perfeita para o apodrecimento do cérebro. E como uma aluna bem lembrou, menos conexões neurais hoje significa mais casos de demência e Alzheimer precoce no futuro.
É uma questão de causa e efeito.
Mas tem boa notícia (graças a Deus)!
A sessão 4 do estudo também revelou que pessoas com bases cognitivas fortes mostraram conectividade neural MAIS ALTA quando usam IA do que usuários crônicos.
Isso significa que se seus neurônios já aprenderam a trabalhar, se já consegue criar conexões neurais, se já tem repertório, a IA vira um amplificador da sua inteligência.
É aqui que entra meu grande conselho para você não ter seu cérebro “derretido” por uma ferramenta tão útil e tão potente…
[Veja, eu sou um leitor voraz desde que eu tinha 8 anos. Calculo que tenha passado os olhos em mais de 1000 títulos ao longo de 36 anos de vida. Mas posso dizer que só aprendi a ler de verdade há cerca de dez anos.
O que seria ler de verdade? Não apenas passar os olhos pelas palavras ou consumir informação como quem come fast food, coisa que grande parte das pessoas faz hoje.
É ler com lápis na mão, fazer anotações, parar para questionar o autor, discordar, voltar a uma página só porque sentiu que leu rápido demais e lembrar de algo que leu, dias depois, enquanto toma banho ou dirige.
É transformar o texto em pensamento próprio. É esse tipo de leitura que cria novas conexões neurais e constrói o tal “repertório semântico”, que te protege da mediocridade e que te dá base para fazer boas perguntas.
O que tenho feito é reforçar esse nível de leitura focada, reservando um tempo e deixando de lado redes sociais, streamings e qualquer outra distração moderna para que, quando eu estiver em frente à máquina não aja igual a um macaco adestrado.
A melhor mídia que inventaram até hoje continua sendo o livro. Por isso, não caia no erro fatal de ignorá-lo (ou não usá-lo bem) como faz hoje a maioria da população brasileira].
O conselho é não banir a IA. Mas usá-la estrategicamente. Usá-la estrategicamente depende de saber pensar. Saber pensar passa por saber ler. Saber ler significa ler bem.
Construir dívidas cognitivas e tornar-se um dependente crônico de IA… Ou construir força cognitiva e tornar-se uma potência humana usando a tecnologia. A escolha é sua!
PS.: Como leitura complementar, sugiro outro texto aqui de Móbidique, onde falo do poder de um tipo específico de leitura. Clique para ler:
(Aviso: Depois de ler, vai ser impossível continuar tratando esse tipo como algo opcional.)
Posso usar IA para treinar briefing?
Querido amigo, refletindo sobre o seu artigo cheguei a conclusão que ainda estou ultrapassada porque faço uso da I.A. somente para pesquisa e não para construção de texto, na minha humilde opinião nada substitui a leitura, escrita, aprendizado e ensino. O livro Life long learning fala exatamente sobre o aprendizado diário e contínuo então se eu não usar o cérebro pra criar um repertório coerente serei um idiota ambulante. Na verdade,passei usar uma empresa de software para tornar uma apresentação interessante, ou seja, uma versão mais dinâmica do Power ponto com recursos interativos, que incrível! John Stott tem um livro chamado "Crer é também pensar" e pensar é desenvolver um raciocínio ou esforço inteligente para criar um repertório de informações importantes e não quero que a I.A. faça isso por mim.